Conteúdo Legal da Semana: em São Paulo, curso de vulnerabilidade masculina ensina a ser menos ‘macho’
24 de fevereiro, 2023O conteúdo legal desta semana é um Repost.Tab.uol, pois o efuxico não tem tempo e nem disposição para pesquisar essas coisas. A fotografia são os Participantes num retiro que desenvolve a “vulnerabilidade masculina” e então fazendo exercício de conexão
Mão apertando o períneo até dar choque, língua esparramada sobre o queixo e ponta dos dedos fazendo cócegas no cocuruto. Isso tudo com pés paralelos, joelhos dobrados, esfíncter contraído, pélvis para frente, peito estufado e respiração ofegante. A postura é complicada, mas tento me concentrar para poder desvendar as emoções varonis que me habitam. Em pé, entre outros sete participantes. Pele com pele, pelo com pelo.
O curso de vulnerabilidade masculina anunciava o lema “encontre a conexão com você mesmo e com o outro”. Para chegar até lá era preciso ir ao Sumarezinho, bairro de classe média-alta da zona oeste de São Paulo, virar em uma rua arborizada, abrir o portão de uma mansão, atravessar um jardim e adentrar uma edícula — formada por um quarto fechado para dar privacidade às práticas com nudez, e outro envidraçado para as com roupa. Dentro da guarita na calçada em frente, o vigia da rua mal desconfiava do entra e sai: “Me falaram que o pessoal aí faz ioga”, diz à reportagem.
O terapeuta Daniel Bittar, 31, é quem guia o grupo. “Para atingir o estado vulnerável, você tem que se entregar às sensações e às emoções. Permitir ser observado e ser tocado”, instrui, logo no início.
No meio dos exercícios, há choros, gritos e até náuseas. Mas nada que chame a atenção dos vizinhos. “Uma vez experimentamos fazer uma catarse no pátio e baixou até polícia, porque foi algo tão intenso que o pessoal achou que estava acontecendo um crime aqui”, lembra Bittar.
Vários tipos de aula sobre masculinidade surgiram nos últimos tempos. Em um extremo estão os coaches de virilidade, que prometem trazer de volta o macho perdido, após algumas sessões de murros no peito e urros primais. Do outro, há retiros que desconstroem esse ideário, abrindo possibilidades em uma época de patriarcas cambaleantes. Entre eles, a ênfase pode ser mais psicológica, sociológica, filosófica ou espiritual — a vivência de Bittar vai mais por essa última linha.
Couraça de culpas
Sento no chão diante de um rapaz búlgaro. Entrelaço braços e pernas com ele. Fecho os olhos, regulo a respiração e seguro as mãos dele. Começa uma meditação ativa ao som de uma trilha musical fofinha e das orientações de Bittar. Ele fala para sentir o calor do sol e do magma percorrendo o corpo de cima a baixo, com rosas brotando no peito, o cérebro virando um cristal, entre outras imagens inspiradas no budismo tibetano.
Ao final da atividade, cada um dá seu depoimento. Conto que senti uma doçura e uma delicadeza, inimaginável para mim até ali para um encontro de cavalheiros. O terapeuta traduz a sensação: “É porque o afeto, o toque, o carinho e a respiração no exercício movimentam uma energia que ajuda no processo de ‘desencouraçamento’.”
Passar bloqueios emocionais para atingir o ser sensível e sentimental, aliás, é a ação inicial e principal do curso. Deixar mochilas e roupas no hall de entrada é simples diante de tirar o peso das costas de históricos de abusos, dores e medos relatados ali.
“Eu mesmo tenho essas barreiras. Você se livra de uma e percebe outra. O egoísmo e narcisismo faz você se fechar”, confessa Bittar. “Me acho superespiritualizado e, de repente, me vejo sentindo inveja de outro homem na praia porque ele é mais alto ou mais musculoso que eu. Esse sentimento tem de ser trabalhado, não adianta jogar num canto para seguir com minha autoimagem de namastê.”
Em outro exercício, pelado e em pé, troco uma massagem suave com um garoto vindo do Recife — no meio da prática, fora as pontas dos dedos, sinto o toque de outra extremidade corporal dele que avançou até minha perna.
A maioria das atividades se faz de olhos fechados. Quando preciso da observação jornalística para o relato, porém, os entreabro e vejo os outros pares com corpos e lábios colados. Nosso professor logo adverte: “Gente, cada um foca e percebe o seu processo. Não se preocupem com a troca. Calma, isso é só o começo.”
Na sequência, é hora de ficar no centro e ter o corpo tocado suavemente por 16 mãos. Os contatos vão desde cafunés na nuca até sopros nos genitais — desafiando as fronteiras homoafetivas de um intruso vindo das hordas heterossexuais.
O que os olhos não veem…
Aquela reunião começou sem ninguém se apresentar. Cada um só podia falar o que estava sentindo no momento, processo que o guia chamou de “heart sharing” (compartilhamento de corações). “Empatia“, “acolhimento” e “aceitação” foram as palavras mais repetidas. Se alguém começava a falar de marcas do passado, Bittar interrompia e pedia para a pessoa se ater às impressões daquele instante. “Se você psicologiza muito o rolê, não se permite sentir o que está acontecendo de verdade”, explica o terapeuta.
Somente no final da jornada houve uma “apresentação formal”: cada um tirava a roupa e se postava diante dos outros e do espelho na parede logo atrás do grupo. Além dos relatos sobre relações amorosas, familiares e religiosas, todos tinham que falar o que achavam de seus corpos.
O último a se apresentar foi um cara coberto de tatuagens e músculos. “Pra mim é difícil ficar pelado diante de tanta gente. Mas tomei coragem porque não tem só eu de sacudo aqui”, disparou, para a gargalhada geral.
Dois ex-obesos expuseram seus dilemas com o corpo. “Quando eu voltava da escola e contava para minha mãe que tinha brigado porque me chamaram de gordo, ela falava: ‘não liga, você é saudável’. Quando a briga era porque fui chamado de viado, ela retrucava: ‘mas também você não para de rebolar e desmunhecar, moleque'”, relembrou um deles.
Outro, alto e atlético, relatou como se viu fragilizado após ter de amputar uma das pernas. “Sempre me senti forte e poderoso. Mas o que existe de mais vulnerável do que ficar dois meses hospitalizado, sem tocar o chão e dependendo de alguém até para limpar sua bunda?”
Na minha vez, revelei minha condição: “Estou aqui como espião hétero”. Todos os colegas fizeram cara de assombro. O terapeuta, depois, contou que eu era o terceiro exemplar, desde que começou seus cursos em 2018.
Sexo, vício e tantra
Bittar recorda que foi o excesso de consumo de pornografia que o fez caminhar em direção das terapias corporais. Começou estudando o toque energético do reiki (medicina integrativa japonesa), para depois se aprofundar no chamado “neotantra”, adaptação ocidental da doutrina espiritual indiana de mais de 1.500 anos.
Em 2019, viajou pelo mundo atrás desses ensinamentos, indo a festivais em Portugal, templos na Índia, retiros em Bali (Indonésia) e uma temporada em Koh Phangan — ilha tailandesa conhecida como paraíso tântrico. De volta ao Brasil, no final de 2020, retomou os cursos.
“As sensações a partir do tato desencadeiam emoções brutas, que depois são elaboradas em sentimentos mais refinados. Isso pode levar a estados intuitivos e também a um entendimento racional desse sentir. No final, você se conecta com sua subjetividade e com seu entorno, saindo da sua casca narcísica”, teoriza o terapeuta.
Um aluno seu viveu uma guinada com as vivências. Ele relatou que teve uma relação castradora com o pai, que o fez sentir raiva de seu corpo e seu jeito mais feminino. Foi buscar alívio usando metanfetamina e ecstasy, substâncias que anestesiavam sua dor e acentuavam seu prazer em sessões de sexo grupal.
“Essas drogas me levavam a um gozo surreal. Chegou ao estágio em que eu queria viver ali, mas o baque depois era muito mais forte, uma energia muito perigosa. O tantra me deu uma sensação parecida, mais diluída, sem o down. E ainda cheguei a picos de prazer, amor e aceitação. É fácil trocar essas drogas pelo tantra e, com isso, escapei de um processo de autodestruição. Eu já estava consciente dele fazendo psicoterapia. Mas era muito mental, e eu não ia nem pra frente nem pra trás”, relata Marcelo (nome fictício, porque ele teme que o relato da sua experiência com entorpecentes possa prejudicar a carreira).
Cadê meu macho?
Volto pra casa meio aéreo depois do curso. Orientações como “homo”, “hetero” ou “bi” perdem o sentido anterior, e o desejo é chegar em um lugar sem placas que digam onde estamos ou se chegamos. Entrei em ressonância com outros afetos masculinos, e senti que essa frequência instável pode ser uma força.
A masculinidade não é a habilidade de abrir potes de azeitona, trocar pneus, saber aplicar um mata-leão ou virar aguardente na goela. Ela também não está em idealizações do tipo “príncipe encantado”, “vingador mascarado” ou “pistoleiro solitário”, muito menos em rótulos como macho alfa, beta, gama, sigma e outras variantes.
Afinal, do que é feito um homem? Não sei (e ninguém sabe). Me implico, mas não explico.
Fonte: Tab.uol